quinta-feira, 20 de março de 2014

Outono


Finge que você era o pai e eu era a mãe. Aí a gente morava numa casa grande com um quintal bonito cheio de flores brancas caídas no chão porque era outono. A gente tinha só a gente porque nossos dois filhos homens tinham casado e se mudado pra longe. Você era um velhinho fofo, com dentes e cabelo, porque acho que careca você ia ficar engraçado. Eu sempre tinha sido paparicada na nossa casa porque eu era a única mulher entre três homens, aí eu fazia tudo que eu queria, mas não era malcriada. Eu me exercitava e era esperta porque sabia mexer no computador. E vocês sempre me falavam que eu era linda, você e os dois meninos, mas você lembrava que eu era a velhinha enrugadinha mais bonita que você já viu.
Aí um dia você saiu da nossa casa e não disse pra onde ia. Finge que você sempre me dizia e dava um beijinho na bochecha (porque velho não da beijo na boca) antes de cruzar a porta da frente de casa, aí dessa vez eu fiquei preocupada. Mas você tinha saído pra fazer uma surpresa, só que eu não sabia. Eu limpava a casa o dia todo e me jogava no sofá, lá pras seis da tarde. A nossa sala tinha uma janela que dava pro lado do quintal que não tinha vizinhos, porque a gente morava na última casa da rua antes de ela virar ladeira e descer pro resto da cidade. Aí, como não tinha muro, dava a impressão que depois da nossa casa só tinha a paisagem do horizonte e mais nada. Era pra esse nada que eu tinha ficado olhando e admirando através da janela depois da faxina. Eu percebia que você não tinha voltado e começava a querer chorar.
Nessa hora você chegava, abria a porta, mas não entrava. Antes de eu correr pra te abraçar, você falava "nossa, você ta ainda nais linda desde que eu saí". Aí eu corria até você, mas você esticava a mão pra frente pra eu não conseguir te abraçar e acabar vendo o que você tava escondendo na outra mão atrás de você. Eu parava com as mãos na cintura sem entender, e nessa hora você me entregava uma margarida e eu via que você também tava com um ukulele. Aí você começava a tocar A Sunday Smile. Eu ficava te olhando, sabendo que você era o homem, ou melhor, o velhinho da minha vida, e descobria que você ainda era bom cantor, mesmo sem prática depois de tantos anos sem tocar e cantar nada.
A música acabava e você dizia "eu demorei porque tava procurando a flor mais bonita do mundo pra te trazer, mas não achei e trouxe essa". Finge que eu te abraçava muito forte nessa hora e não duvidava da justificativa do seu sumiço do dia todo porque depois de tantos anos juntos eu sabia que podia confiar em você, e você só tinha demorado mesmo porque tava na casa do seu irmão ensaiando a música.
Pronto, é assim, o resto a gente improvisa. Vai, começa...

"All I want is the best for our lives,
my dear,
And you know my whishes are sincere"

(Beirut)

Obrigada, Chico Buarque, pelos moldes de João e Maria.

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