domingo, 30 de março de 2014

Lembra?


Lembra daquele dia em que nos conhecemos? A idade era pouca, nossos olhos ávidos de curiosidade pelo que nos esperava. Você puxou assunto porque era a pessoa mais legal do dia e eu te correspondi porque era ainda mais curiosa e não me importei em falar com você, sentado por acaso ao meu lado  que mal teria? Nossos nomes eram molduras na parede e a partir dali ficariam até hoje e também daqui por diante penduradas em nossas lembranças, ainda não sabíamos.
Lembra que surpresa o destino, a sorte  não sei  nos preparou? Meu lado era seu e o seu, meu. Cada dia éramos estreitados para junto de nós mesmos por quem nos olhava. Todos sempre tiveram certeza do nosso pertencimento antes da gente porque nunca nos preocupamos em pensar nas coisas, só éramos. Cada riso junto era só a nossa diversão transbordando porque o bem feito um ao outro enchia o copo até a borda e escorria livre, libertador.
Lembra dos segredos, da cumplicidade, dos sonhos? Misturamos tudo isso, mais eu do que você. E você soube decifrar cada coisa como ninguém, me sorrindo, apoiando e tirando meus pés do chão com seus desejos declarados só pra mim. Embarcamos nas nossas fantasias, eu com meu medo nas mãos, você com a coragem nos olhos, o peito aberto, a cara à tapa e os braços ao meu redor.

"Dos nossos planos é que tenho mais saudade,
Quando olhávamos juntos na mesma direção.
Aonde está você agora,
Além de aqui, dentro de mim?"

(Legião Urbana)

quinta-feira, 20 de março de 2014

Outono


Finge que você era o pai e eu era a mãe. Aí a gente morava numa casa grande com um quintal bonito cheio de flores brancas caídas no chão porque era outono. A gente tinha só a gente porque nossos dois filhos homens tinham casado e se mudado pra longe. Você era um velhinho fofo, com dentes e cabelo, porque acho que careca você ia ficar engraçado. Eu sempre tinha sido paparicada na nossa casa porque eu era a única mulher entre três homens, aí eu fazia tudo que eu queria, mas não era malcriada. Eu me exercitava e era esperta porque sabia mexer no computador. E vocês sempre me falavam que eu era linda, você e os dois meninos, mas você lembrava que eu era a velhinha enrugadinha mais bonita que você já viu.
Aí um dia você saiu da nossa casa e não disse pra onde ia. Finge que você sempre me dizia e dava um beijinho na bochecha (porque velho não da beijo na boca) antes de cruzar a porta da frente de casa, aí dessa vez eu fiquei preocupada. Mas você tinha saído pra fazer uma surpresa, só que eu não sabia. Eu limpava a casa o dia todo e me jogava no sofá, lá pras seis da tarde. A nossa sala tinha uma janela que dava pro lado do quintal que não tinha vizinhos, porque a gente morava na última casa da rua antes de ela virar ladeira e descer pro resto da cidade. Aí, como não tinha muro, dava a impressão que depois da nossa casa só tinha a paisagem do horizonte e mais nada. Era pra esse nada que eu tinha ficado olhando e admirando através da janela depois da faxina. Eu percebia que você não tinha voltado e começava a querer chorar.
Nessa hora você chegava, abria a porta, mas não entrava. Antes de eu correr pra te abraçar, você falava "nossa, você ta ainda nais linda desde que eu saí". Aí eu corria até você, mas você esticava a mão pra frente pra eu não conseguir te abraçar e acabar vendo o que você tava escondendo na outra mão atrás de você. Eu parava com as mãos na cintura sem entender, e nessa hora você me entregava uma margarida e eu via que você também tava com um ukulele. Aí você começava a tocar A Sunday Smile. Eu ficava te olhando, sabendo que você era o homem, ou melhor, o velhinho da minha vida, e descobria que você ainda era bom cantor, mesmo sem prática depois de tantos anos sem tocar e cantar nada.
A música acabava e você dizia "eu demorei porque tava procurando a flor mais bonita do mundo pra te trazer, mas não achei e trouxe essa". Finge que eu te abraçava muito forte nessa hora e não duvidava da justificativa do seu sumiço do dia todo porque depois de tantos anos juntos eu sabia que podia confiar em você, e você só tinha demorado mesmo porque tava na casa do seu irmão ensaiando a música.
Pronto, é assim, o resto a gente improvisa. Vai, começa...

"All I want is the best for our lives,
my dear,
And you know my whishes are sincere"

(Beirut)

Obrigada, Chico Buarque, pelos moldes de João e Maria.

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